Em meio à mudança que dará fim ao pagamento em dinheiro no transporte coletivo do Distrito Federal, os cobradores das empresas que atuam na capital vivem momentos de incerteza e de medo. O secretário de Transporte e Mobilidade, Zeno Gonçalves, já confirmou que ninguém será demitido, mas a promessa não saiu do campo verbal e, por isso, os rodoviários seguem apreensivos.
De acordo com portaria publicada em 16 de maio no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF), os passageiros não poderão usar cédulas e moedas para pagar o transporte — serão aceitos apenas os cartões Mobilidade e Vale-Transporte, Pix e cartões de crédito e débito. A publicação dava a entender que a mudança seria totalmente implementada em 1º de julho, mas, nessa quarta-feira (19/6), a Semob informou, em nova portaria, que a mudança será gradativa, até o fim de 2024.
Sem a necessidade de um funcionário para receber e trocar notas e cédulas em espécie no futuro, os cobradores têm dúvida se serão mesmo mantidos ou se sofrerão mudanças ou desligamentos. Durante a semana, o Metrópoles conversou com rodoviários de diferentes empresas. Todos disseram que não foi emitido comunicado oficial sobre qualquer mudança; um dos funcionários tomou conhecimento sobre a medida somente ao ser questionado pela reportagem. Temendo represálias, a maioria preferiu a condição de anonimato.
Para um cobrador da empresa Urbi, a extinção do dinheiro em espécie ataca o direito de ir e vir. “De certa forma, fere o livre arbítrio do passageiro de escolher se quer pagar com dinheiro ou cartão”, declarou. “Além disso, os aplicativos do BRB apresentam muitos problemas. Diversos usuários reclamam que fazem a recarga via Pix e o valor não cai na hora. Já vi muita gente esperar por três dias para o pagamento constar”, relatou o funcionário, que preferiu não ser identificado.
O colaborador rechaça a hipótese de que a proibição de dinheiro em espécie reduziria os assaltos nos coletivos. “É balela. Bandido não rouba só dinheiro, também rouba celular, bolsa…”
Para Rômulo Targino, também da Urbi, o cobrador é essencial em uma viagem. “Não estamos ali só para cobrar dinheiro. Também ajudamos no embarque e no desembarque do passageiro, prestamos informações. Se o motorista tiver que fazer isso, ele irá trabalhar em dobro”, afirma o jovem, de 21 anos. “Muitos colegas estão preocupados. Ninguém sabe o que vai acontecer. Já ouvi boatos de que nos colocariam em outro setor. A maioria está com medo de ficar desempregado”, comentou.
Um funcionário da Piracicabana alerta que usuários de fora de Brasília podem encontrar dificuldades com a mudança. “Muita gente que vem do Entorno ou de outras regiões do país pode não ter cartão de crédito e débito, só dinheiro. Como eles farão para usar o transporte?”, indaga. O cobrador é mais um que tem receio de acabar perdendo o emprego a partir do momento em que não precisar mais trocar dinheiro. “Depois de certa idade, a gente não consegue mais trabalho. Eu tenho 55 anos de idade e atuo como cobrador há 32.”
Um empregado da BSBus (antiga São José) disse que só soube do assunto por meio de notícias da imprensa. “Nós somos os últimos a saber das mudanças, a novidade vem de uma vez”, reclama o cobrador, que tem mais de 10 anos no cargo. “Não tivemos uma posição de quem quer que seja. Tudo que ouvimos é a ‘radiopatrulha’: um papo que rola aqui, um boato que corre ali. Até o momento, só isso”, completa um colega, que também atua na empresa há mais de uma década. “A sensação que dá é que nem mesmo o governo sabe o que vai fazer.”
Eles também criticam o sistema do BRB Mobilidade. “Tem gente que recarrega o cartão por aplicativo e fica esperando por 10 dias o crédito cair. Quando o dinheiro parar de circular, o passageiro vai usar o cartão, não vai constar saldo e vai ficar sem o que fazer”, fala um deles. “Sem contar que não há postos do BRB em todo lugar e nem todos funcionam o dia todo. Quem sai de casa às 4h30 vai recarregar cartão onde?!”, reforça.
Sindicato tenta defender
O presidente do Sindicato dos Rodoviários do Distrito Federal (Sittrater-DF), João Jesus, atesta que a maioria dos cobradores aguarda com preocupação os próximos dias. “O nosso trabalho é de campo, convivemos diariamente com eles. E, todo dia, dezenas de colegas nos procuram pedindo que a gente olhe por eles, dizendo que dependem do emprego, que estão com medo”, revela.
O Sittrater-DF estima que o DF tem hoje cerca de 6 mil cobradores. João Jesus afirma que o sindicato não é contrário à modernização proposta pela medida do Governo do Distrito Federal (GDF), mas alega que impedir o uso de dinheiro em espécie seria inconstitucional. “Tem muito passageiro que não possui cartões e nem acesso à tecnologia para pagar com Pix via QR Code. A essas pessoas, só restam o dinheiro vivo”, reflete Jesus.
Quanto à postura do Sittrater-DF, o presidente declara que não permitirá que os cobradores sejam remanejados para outros cargos. “O cobrador continua sendo essencial nos coletivos. Se um passageiro mal-intencionado quiser passar a roleta, por exemplo, o motorista não poderá fazer nada, porque estará dirigindo”, exemplifica.
João Jesus cita, ainda, outras utilidades do cobrador. “Ele auxilia no embarque de pessoas com necessidades especiais, ajuda a manter a ordem no coletivo, presta informações aos passageiros, auxilia o motorista de maneira geral. Ele tem uma utilidade inquestionável, que vai além de passar troco.”
Semob nega mudanças
O presidente do Sittrater-DF revela que a Semob tem sido solícita aos pedidos da categoria e assegurado que não fará mudanças na carreira dos cobradores. “Pedimos a eles que não mudem ninguém de função e, claro, não demitam ninguém. Eles nos deram a palavra de que manterão isso”, diz Jesus. Ainda assim, o órgão sente falta de uma garantia mais concreta, como um decreto.
Jesus afirma que não pensa, no momento, em medidas como paralisação de rodoviários. Mas alerta: se os cobradores sofrerem mudanças em seus cargos, haverá resistência.
Em maio, o secretário da Semob, Zeno Gonçalves, participou de Comissão Geral na Câmara Legislativa do DF (CLDF) que a pasta tem “zero viés de perspectiva, neste instante, de retirada de cobrador”. “Não é um assunto que está na nossa pauta. Tranquilizem o coração de vocês”, declarou.
Órgãos se manifestam contra
Na semana passada, a Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Distrito Federal (OAB-DF) entrou com pedido de liminar para suspender a portaria que determinava o fim do pagamento em dinheiro nos ônibus. Para a OAB-DF, a medida “é inconstitucional, pois viola o direito fundamental de locomoção da população”. “Não se pode fazer algo desse tamanho por meio de uma portaria, sem diálogo, sem debate prévio e sem a população estar preparada. E isso ainda poderá gerar o desemprego de cobradores, ter impacto no sistema de transporte como um todo”, argumenta a entidade.
Presidente da Comissão de Transporte e Mobilidade Urbana (CMTU) da CLDF, o deputado distrital Max Maciel (Psol-DF) fez pedidos à Semob por mais pontos de venda e recarga de valores no cartão de acesso a ônibus e metrô. Max pede que a pasta “elabore iniciativas para incentivar o uso do Sistema de Transporte Público Coletivo, em especial o metroviário, a exemplo de descontos na compra de bilhetes mensais, quinzenais e semanais”.
Respostas
Em contato com a reportagem, a Semob afirmou que os cobradores “serão mantidos nos postos de trabalho”. A pasta destacou, ainda, que os funcionários serão “fundamentais” na transição da medida que extinguirá o uso do dinheiro “para tirar dúvidas e auxiliar os passageiros sobre as formas de pagamento eletrônico”.
A Secretaria alega ainda que “determinou às operadoras o treinamento dos cobradores e demais colaboradores do sistema”, sem informar se essa capacitação também abrangeria a realização de outras funções futuramente.
Quanto à mudança gradativa, as primeiras linhas a aderirem a suspensão do pagamento em dinheiro serão aquelas em que a grande maioria dos passageiros já usa cartões. A pasta ainda divulgará quais serão esses itinerários.